segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

TUDO AO REDOR


Fim de ano. E, muito além do que possar significar as festas nesse período e como isso pode impactar nas pessoas em luto, tenho estado rodeada de simbolismos, de lembranças, de datas. Na verdade, pouco me importa ou me afeta Natal e ano novo. Nesses dias, duas datas tem sido muito mais  significativas para nós: o dia 21/12, do nascimento e quando Nico completaria três meses de vida, e o 25/12, justamente Natal, data em que fará 1 mês da morte. Curiosamente, estou escrevendo hoje,  no meio dessas duas datas. Talvez por uma 'auto-proteção', pois creio que não teria condições emocionais para escrever nos dias exatos.

Foram muitas coisas de sexta pra cá. Decidimos ir a Barra Grande com a família. O que significa para mim ter lembranças, muitas lembranças. Da última vez que estive lá, estava grávida dele, com uns cinco meses. Sem falar que a casa, a praia, o ambiente, tudo me remete às minhas bebês..  ainda mamando e pequeninas, quando as ninava na varanda, dava de mamar no palhoção de frente ao mar, eu dormia pouco, cansava muito e trocava fraldas na sala. Além disso tudo, estivemos este fim de semana com nossa sobrinha, que nasceu apenas 10 dias antes de Nicolas, e estava lá, linda , esbanjando saúde. O que despertou em mim um sentimento bastante ambíguo, pois queria aproveitá-la, acariciar, estar junto, curtir , curtir, mas ao mesmo tempo, fiquei muito sensível ao ver um bebê da mesma 'idade' e sabendo que não teria o MEU bebê para trocar a fralda ou ouvir o choro. Uma sensação muito, muito confusa. 

Fiquei bastante perturbada também com uns sonhos que tive. O primeiro, na verdade , um pesadelo, foi um dia antes de irmos à praia. Nele, eu e mais uma pessoa, que acredito ser o Rodrigo, sofríamos um terrível acidente de carro. Nesse acidente, que envolvia três carros, eu via os dois outros baterem em postes e meio fio e se destruindo, no que eu presumia que os ocupantes dos carros haviam morrido e nosso carro era o único em que ninguém morreu. Lembro que no sonho, logo após o desastre, eu gritava muito, desesperada, chorando, mas agradecendo com fervor por estar viva ("ai, meu Deus, obrigada, obrigada, estamos vivos,  só nós estamos vivos!". Entretanto, da mesma forma que gritava agradecendo, eu dizia e sentia uma culpa gigante por estar viva e os outros não; e gritava "eles morreram por nossa causa! eu deveria estar  morta também". Um misto de gratidão e angústia, muita culpa e dó por AQUELAS pessoas terem morrido (e não eu).  Enfim, comentei isso com o Rodrigo e ele soltou um " é exatamente tudo que a gente passou!!". Daí me lembrei que, no nascimento prematuro de Nicolas, eu também achei que podia morrer, eu sabia que EU também poderia ir junto. Tive muito medo e achava que podia acontecer.  Um tempo depois, já no hospital, no final dos dois meses de tempo dele, tive uma conversa com minha mãe na qual ela disse muito emocionada "até minha vida já ofereci em troca da dele, pois eu já vivi o suficiente..." :-(  Partindo desse raciocínio e voltando ao sonho, é como se eu tivesse dizendo ou pensando isso: eu NÃO sou grata por ter ficado viva (em detrimento de 'outros', do meu filho). A ordem das coisas deveriam (mas sei que não são) ser outra. Porque não deixar em vida um bebê cheio de história pela frente? Porque que ele não viveu e eu continuo aqui?  
(ao pensar assim, tento voltar à realidade aqui e agora e colocar na mente: pelas minhas meninas!, estou aqui ainda por elas!)

O segundo sonho que tive foi de ontem pra hoje. Como tenho dormido bem mal, ontem tomei um remédio para esquecer um pouco e para pegar no sono mais rápido. Mas parece que foi pior. Tive mais um sonho bem aflitivo. Nele, era como se eu tivesse ou voltasse ao hospital e a neonatologista que o acompanhou todo o tempo chegava para mim e dizia: " Leticia, não sei se eu deveria lhe contar isso, e não vai mudar nada.. mas Nicolas está VIVO. Não vai mudar porque ele ainda está muito mal, mas naquele dia nós o mantivemos aqui e ele ainda tá em vida, mas não está bem". Eu ficava indignada porque ninguém tinha me dito nada e ainda questionava "mas eu vi TUDO! ele estava no meu colo quando morreu.. e eu vi arrumando-o." No final , não lembro como ficou.. o que aconteceu depois, mas é obvio que isso é o meu desejo explícito de que ele voltasse, de que ainda nos encontrássemos nessa vida. Ou da vinda de um milagre , como tanto pedi.

E finalmente, outras coisinhas me deram uma chacoalhada. Chegando em casa na volta da praia recebo um envelope grande enviado pelo Banco de Leite do hospital. Eram um Certificado de agradecimento como Doadora de leite materno e um chocolatinho de 'Boas festas'. Mais uma vez, dou um breve sorriso de satisfação, mas é inevitável relembrar: quantas milhares de horas não passei naquele banco de leite e em casa retirando e separando leite pro MEU filho? mas não foi para ele? Sim, senhoras e senhores, é um pensamento egoísta. Mas é também uma lembrança sincera, um reconhecimento do meu esforço e, na época, pela minha torcida por ele. 

Dia 25 está aqui, do lado, celebrando o nascimento de Jesus. Mas por aqui, justo o oposto, um mês de luto.
Vou conseguir escrever? Não sei, não creio.. Penso que o nível de elaboração que quero atingir está numa mensagem que recebi hoje, de um velho amigo velho e bem experiente de vida:
"Penso que nossos mortos jamais nos abandonam. No princípio , com muita dor. Depois, como um perfume que alegra nossa alma."

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