segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

"A MÃE ORFÃ"


Filho, faz duas semanas que você partiu. Não tem um dia, uma única noite, que não pense em você.

 Aliás, as noites pra mim tem sido um suplício. Não tenho conseguido dormir, muitas insônias, muitos pensamentos, muita saudade, e muita falta do que não tive. Fico pensando como seria com ele e o que estaríamos fazendo, ou se já estaria em casa e mamando. Se eu teria uma noite mal dormida simplesmente por cuidar e acordar com meu bebê 'recém-nascido', com seu choro, e pra mamar. Preciso até registrar aqui um sonho que tive com ele, dias antes de nos deixar. Sonhei que ele já estava grande , chegando aos seus vinte anos, mas com a mesma carinha e cabelo de bebê; ele ia até meu trabalho , onde haveria um evento, e eu celebrava em tom de pergunta " Mas filho, você veio? Que bom , e saiu do hospital? Mas tudo bem ter tirado o tubo pra respirar?" E ele me respondia: "Sim, mãe , não tem problema, eu tenho um um negócio aqui para urgência"  (como se estivesse com uma bombinha de asma ou um aparelhinho que o ajudasse, caso precisasse respirar melhor..). 
Mas atualmente, tenho tido muita dificuldade para dormir pensando em tudo. E, pela manhã, acabo não tendo estímulo e vontade de acordar, ou estou cansada da surra de reflexões, ou do choro da noite anterior. 

Esta semana é muito significativa pra mim. Hoje completam duas semanas que ele se foi, mas na verdade, somente amanhã seria sua Data Provável de Parto (DPP). E cá estou eu, em vez de estar resolvendo coisas para o 'nascimento', estou justo começando a tratar da ausência, da falta , do não ter Nico. Ter que cancelar o plano de saúde, que só durou um mês e foi uma burocracia para incluir. Ter que olhar e lidar uma 'Certidão de Óbito'. Lembro de uma conversa que tivemos no hospital, a psicóloga ter dito algo importantíssimo: "estamos lidando com extremos paradoxais, pensar na morte, quando se deveria estar falando do começo da vida".

Tem sido extremamente difícil ter, ao lado do meu, um quarto praticamente pronto, com dois berços e uma série de outras coisas guardadas. Ter que aos poucos começar a nos desfazer dessas coisas. E é mais duro ainda constatar que a cada coisa desfeita, vendida, levada, doada, teremos cada vez menos o Nicolas, que não há volta, que ele se foi. Sinto que tirar os rastros materiais, também é se distanciar...e se distanciar até da tristeza, do luto... Por isso, tenho guardado numa maletinha que a tia Dani deu, desde a festinha de descoberta do sexo, cada lembrança do meu anjo. Pulseiras de hospital, umbigo, carimbo dos pezinhos, mechas do cabelo. E esta seguirá  comigo até o fim da minha vida, onde quer que esteja. 

Dia desses assistindo a uma série, um adolescente, pensando na morte da mãe, escreve o seguinte (que me identifiquei muito): 
A teoria do espaço tempo pode ser aplicada ao mundo real. O passado não desaparece, permanece dentro de nós, em nosso presente. O tempo volta como um vídeo; que repete as mesmas cenas diversas vezes. (...) um gesto simples (fica). Seguir em frente é uma ilusão. Como diz Einstein: as coisas mudam superficialmente, mas no fundo continuam iguais. 
E se a dor não fosse um obstáculo a ser superado? Fosse só uma estrada a ser percorrida. E haverá sempre um detalhe... que não te abandona nunca. 

Isso tudo, toda essa questão do seguir em frente, me faz lembrar de um artigo que li - ainda no hospital, na iminência da partida de Nic - da maravilhosa Eliane Brum, intitulado "A Mãe órfã". Nele, a jornalista brilhantemente joga luz no luto neonatal, no começo da utilização de cuidados paliativos em UTIs Neonatais (como aconteceu com Nicolas), no processo de elaboração de pais enlutados e também daquilo que citei acima: como lidar com a morte de quem acabou de nascer. Com muita sensibilidade , ela também expõe sua história, na qual os pais perderam a sua irmã (antes dela) que tinha apenas 5 meses. 
Link para o artigo na íntegra:
"A Mãe Órfã - Lutos Mal Elaborados também matam"

Colo aqui algumas passagens bem importantes:

"O que pouca gente parece compreender é que a vida do bebê, para os pais, não começou no seu nascimento. Iniciou muito antes, quando aquele casal sonhou com um filho, concebeu sua existência. E nele depositou suas melhores esperanças e desejos de continuidade. É uma vida muito mais longa do que horas, dias, semanas, meses. Antes de um bebê existir como indivíduo, para os pais ele já é. E é da forma mais cara para os humanos – como desejo. Quando tudo isso é arrebentado por uma morte precoce, se a família não é bem cuidada, ela se arrebenta inteira."

"É importante que essa vida seja não esquecida – mas lembrada como uma história que, apesar de curta, teve bons e maus momentos, como todas as vidas. Lembrada em fotos e recordações como parte da trajetória daquela família. Uma trajetória que segue."

"Ao fazer esta reportagem, testemunhei o lugar ambíguo dos homens na morte de um bebê. Há um reconhecimento social de que, por ter gerado, a mulher é, se não a única, a maior sofredora. Muitas vezes seu sofrimento é tão aniquilador que não deixa espaço para a dor do homem, do pai daquele bebê.
O homem, que foi educado para suportar a dor em silêncio, para proteger a mulher, para ser o provedor e o esteio – e ainda hoje estes papéis são mais cimentados do que parece – aceita esse lugar menor no luto."

"Conto esta história na esperança que, agora e no futuro, homens e mulheres possam ter a chance de ser compreendidos na enormidade da sua perda e fazer um luto que torne possível seguir a vida. Transformar a dor em algo ativo é parte da superação da perda."


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